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O sorriso da tragédia

Mostrava-se mais lépido e faceiro que em dias anteriores. Sempre de terno e gravata, entrou no restaurante e sentou na minha mesa com aquele sorriso permanente que parecia ter sido colado com superbonder. Verdade que a gravata já vira dias melhores, e o terno de tecido nobre já mostrava sinais de cansaço. Mas aquele sorriso eterno nunca precisou ser revitalizado.

Conversamos sobre amenidades, enquanto eu refletia como é que pode um ser humano atolado em uma tragédia não demonstrar isso. Nem mesmo em um fiapo fugitivo de amargura no semblante.

Com 50 e poucos anos, recebia uma aposentadoria precoce de bom tamanho. Separado da mulher em condições humilhantes, o dinheiro encolhia em parte pela pensão e parte por ele dar outro tanto para os filhos.

– Tens visto o o professor?

Não, eu não tinha visto o professor. Eu comia um puchero, uma das poucas casas que serviam esse ensopado, mas que nesta casa era seco, com a espiga de milho apontando para cima como se fosse um dedo de Deus gorducho.

Aquele sorriso acompanhava o mastigar. Eu sabia, mas não por ele que, à medida que o mês passava, o dinheiro encolhia antes do próximo entrar no seu bolso, como que pedindo desculpas por ser tão pouco.

Pior, nem sempre conseguia pagar a diária de um hotel de terceira categoria, o que o levava a recorrer a um abrigo espírita na avenida Ipiranga, cujos hóspedes eram mendigos na sua maioria. Ruim, né? Neste ponto, eu o interrompi para dizer uma bobagem solta no espaço.

 – Por que não reduzes a mesada que dás para teu filho? Afinal, tua ex ganha o teu e tem dinheiro de família.

Meu arrependimento acompanhava cada sílaba assim que saía da boca. E ele a devolveu com juros e correção.

 –  O quê? Eu não posso fazer isso com eles! Não posso e não devo.

 Eu e minha boca grande. O sorriso dele não fugiu do rosto. Neste trecho da estrada verbal, peguei o atalho de papo aleatório para ir a lugar nenhum. Eu era um fugitivo da impertinência. A conversa seguia normal, mas por dentro eu sentia remorso.

 Neste ponto, aconteceu uma daquelas coincidências milagrosas. A casa estava relativamente cheia, mas se fez um silêncio repentino em que nenhuma palavra dos comensais era ouvida. Nem mesmo um ruído de bandeja jogada no balcão, o tilintar de talheres se chocando, barulho de cozinheiro batendo um bife, nem ruído do trânsito ou buzinas.

O único ruído era o “taquetaque” do compressor da grande geladeira. Em seguida, ele parou emitindo um suspiro característico dessas máquinas frias, quando desligam. Imaginei que talvez ele tivesse ouvido o papo e soubesse da tragédia do homem que nunca perdia o sorriso.

 Durou três segundos a trégua. Em seguida, a balbúrdia de um restaurante ao meio dia pediu licença e voltou batendo no rosto do homem que nunca perdeu o sorriso.

Fernando Albrecht

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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