São 5h da manhã em dia frio do inverno de 1964. Levanto da cama e engulo um pedaço de cuca que minha mãe deixou de sobreaviso em cima do fogão.
Pouco depois, caminho três quadras até o ponto do ônibus urbano que me deixará na cabeceira da pista do Aeroclube de Montenegro em 20 minutos. Em lá chegando, apalpo o bolso para ver se não esqueci a Carteira de Piloto Privado número 11.152, que tão orgulhosamente mostro para quem quiser. Não que vá precisar, é pura gabolice minha.
Com muito esforço, abro a porta do hangar de onde tiro, também a duras penas, o CAP 4 prefixo PP-GCC, companheiro fiel de muitas horas de voo. Olho a biruta imóvel no alto do hangar, vai ser um dia sem vento, dia frio, o avião sobe melhor, perfeito para voar.
Pretendo sobrevoar duas ou três cidades do Vale do Caí. Frio de rachar. Bombeio gasolina de alta octanagem do tonel para um grosso funil com camurça que retem a sujeira.
Logo em seguida, abro a tampa do tanque, entre a carlinga e o motor e despejo lentamente o combustível. Não há marcador, apenas um arame em cuja ponta inferior há uma rolha. Na medida que esvazia, o arame fica mais curto.
Chuto os calços nas rodas, ligo os magnetos 1 e 2 – não tenho bateria nem motor de arranque – movo a manete de potência dois centímetros para a frente e vou acionar a hélice manualmente. Motor frio, leva um tempo até ele pegar.
Enfim, chuto os calços e me apresso a entrar. Frio medonho, piorado pela corrente gerada pela hélice de passo fixo.
O motor Continental de quatro cilindros gera apenas 65 cavalos. Pouco, mas o Charlie Charlie pesa apenas 320 cavalos. Armação de metal coberta por lona que levou meia dúzia de demãos de um impermeabilizante chamado dop.
Olho os poucos instrumentos básicos, bússola, pressão e temperatura do óleo, altímetro, conta-giros (RPM) que marca mil giros em marcha lenta, 2.150 ou 2.200 em velocidade de cruzeiro – não forço mais porque um tucho hidráulico do motor faz um barulho chato – velocímetro e um pequeno receptáculo em forma de lua crescente, com uma bolinha de aço móvel no centro. Se a curva for perfeita, a bolinha fica no meio: se eu der mais pedal (leme de direção) que alierons (inclinação das asas), ela fica no centro. Se for para o lado oposto, estou derrapando, se for para o lado interno estou afundando.
Começo os procedimentos de decolagem. Testo os dois magnetos separados, as RPM não podem cair mais de 100 RPM. Logo, rolo o manche e os pedais do leme, o compensador fica um pouco para a frente do centro, serve para diminuir a pressão no manche para subir ou descer.
Testo os diminutos pedais do freio. Espero a temperatura do óleo passar de 40 graus C, olho em volta e vou para a cabeceira da pista em zigue-zague porque o motor não permite que veja o que está em frente.
Em uma cabeceira há fios de alta tensão. Faço uma última conferência, olho para os lados, tudo normal, empurro a manete de potência toda para a frente e sinto que os comandos ficam mais duros.
Nada de rádio, voo por instrumentos, horizonte artificial. Para navegação mais longa, tem que saber de trigonometria e álgebra. Traçava-se a rota usando uma régua, um triângulo é um compasso.
Olho para o velocímetro, mas já sei que posso puxar o manche para trás um pouco acima dos 60 Km/h. Velocidade de subida, 90 Km/horários; cruzeiro, 125.
Subo até mil pés (300 metros) curto brevemente a paisagem sempre de olho nos instrumentos. Ventos laterais se sentia com a bunda – isso mesmo, o avião é leve e desliza.
Depois tomo meu rumo me sentindo o homem mais feliz do mundo. Eu sou o rei dos ares. A vida é bela.
Assim se voava há 60 anos.