Quem viveu as primeiras Feiras do Livro de Porto Alegre sabe que a comparação com a de agora é anterior ao exercício de inutilidade. Para começar, a sineta do xerife é uma gravação. O que me leva à suspeita de não há quem saiba mais manejar o instrumento, que também servia para chamar o recreio ou o começo das aulas.
Ou então, a sineta se misturou com os fantasmas dos escritores do passado. Mas isso é picuinha, direis amantes das letras pretas em páginas brancas. De fato, o espírito da feira se perdeu como a sineta que não é mais badalada.
Nos anos 1950, eu voava o doce pássaro da juventude, Com suas asas, sai do interior especificamente para comprar um livro. Os livros sempre foram caros. Entretanto, na época fértil de títulos novos de ficção, tinham abatimento de 50%.
Já os usados se comprava às dúzias, e não havia essa moda de obras de autoajuda. Como dizem os antigos, quem sabe faz e quem não sabe ensina. As barracas eram dispersas praça afora, um labirinto onde havia quase-colisões entre os ávidos leitores.

Mas eu havia colimado meu alvo, O Grande Circo, de Pierre Clostermann, um piloto francês que havia abatido 33 aviões alemães na II Guerra Mundial com seu caça Spitfire inglês. Um ás, com competência também para contar histórias de guerras, pessoas e aviões.
Não titubeei em gastar um dinheirinho dolorosamente poupado. Ainda deu para comprar um ou dois Jorge Amado, o mestre baiano, e Machado de Assis, outro que merecia ser mais lido.
As pessoas eram mais sensíveis para os prazeres da alma. Hoje, abunda a sensibilidade de uma retroescavadeira.
Com os volumes embaixo de cada sovaco, permiti-me olhar a paisagem. Logo adiante vi uma garota usando saia plissada. Linda a mais não ver.
Percebi que ela me olhava com o rabo do olho, esse periscópio lateral. Aleluia, pensei, eis uma feira de livros e meninas bonitas. Abrindo caminho me dirigi a ela, mas a perdi.
Naveguei pelo mar da esperança com a bússola apontando para uma saia plissada. Essa brincadeira durou uns bons 20 minutos, até que não vi mais nem a saia nem ela. Então cansei.
Confesso que lastimo a sorte madrasta. Em desespero visual percorri todas as bancas com olhos de farol de automóvel. Mas, realmente, ela tomou chá de sumiço. Ou se arrependeu, sabe-se lá.
Que coisa, vir de tão longe para se frustrar. Um amor possível que se transformou em impossível. Cá entre nós e Pierre Clostermann, amores eternos, como Romeu e Julieta, só são impossíveis quando não consumados. O amor é como a pluma, voa tão leve e tem a vida breve, precisa de vento sem parar, já cantava Vinicius Moraes.
Fui trotando até a Estação Rodoviária sobraçando minha nova biblioteca, ligeiramente temeroso que eles viessem ao chão. Eram meu consolo por ter perdido a menina que me encantou. Relembrando o episódio, lembro da música “Feitio de Oração”, do formidável Noel Rosa.
Quem acha
Vive se perdendo
Adiante, a letra fala na “dor tão cruel de uma paixão”. Bueno, não cheguei a tanto. Pelo menos eu tinha meus livros para um mês de leitura e releitura para esquecer a menina da saia plissada.