– Aainda foi desta vez – disse o barqueiro.
Estava eu em uma, espécie de torpor, deitado na cama do Hospital Nora Teixeira, pouco depois de um cateterismo para limpar as coronárias. Ele usava um capuz e não conseguia ver seu rosto. Longo remo na mão, com seu barco de madeira embicado na margem de um rio cheio de curvas e escuridão.
Na mitologia egípcia, o barqueiro Caronte levava as almas dos mortos para o submundo com seu barco singrando o rio Estige. Na margem oposta, um gigantesco cão de guarda, o Cérbero, que permite a entrada das almas no reino dos mortos e impede que jamais possam voltar.

Pobres ou faraós, ninguém escapava da última viagem. Menos eu, que nem entrei no barco dos mortos, pelo menos provisoriamente. Estava pronto para um infarto e, adeus, tia Chica. É estranho como estas ideias nem sempre sombrias passam pela cabeça.
O começo foi com uma fadiga monstruosa e fôlego curto. Começou a mais de meio ano e eu não podia caminhar uma quadra sem botar os bofes para fora. Inventei montes de explicações.
Estava, há 28 anos sem férias, o estresse financeiro blá blá blá. Os postes e as casa eram meus amigos, eu podia me encostar neles.

Um dia fui ao Mercado Público e, ao atravessar a avenida Júlio de Castilhos, encostado na parada do ônibus, quando gritei para mim mesmo. No dia seguinte, fui ao doutor Fernando Lucchese, bam bam bam da Santa Casa, amigo há 50 anos.
Expliquei o que estava sentindo e ele me baixou direto para o hospital. Os exames todos deram bons, menos a tomografia com contraste. Minhas coronárias estavam mais entupidas que a Protásio Alves no final da tarde de uma sexta-feira.
Agora o lado bom e por que não entrei no barco de Caronte. Desobstríram minhas Ilhas Canárias e colocaram quatro stents num upa.

Terminaram o serviço numa sexta e fui para casa no sábado. Estou caminhando distâncias cada vez maiores sem perder o fôlego.
Único problema foi a perda de dois amigos – os postes e as paredes dos prédios. Em compensação, o episódio me mostrou como eu tenho amigos e fiéis leitores.