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O navio que ancorou na Rua Riachuelo

Os anos 1970 marcaram o início da decadência do Centro de Porto Alegre, quando começou a invasão dos camelôs e a expulsão da classe média da área central. Ainda havia os bares dos hotéis e outros, que foram morrendo de morte matada, em parte pelo fim dos estacionamentos.

E todo bar que se prezasse tinha a Mesa 1, fregueses diários que batiam ponto e até almoçavam ou lanchavam na mesa. E, com eles, vieram os serviçais que faziam pequenos favores. Tais como entrar em filas enormes nos bancos para pagar contas, buscar ou levar papéis e documentos para os respectivos escritórios ou comprar algo no Mercado Público. O mais generoso era o doutor Zeca, depois um sujeito com nariz vermelho apelidado de Sadi Beterraba.

Entre eles, estava o Baiano. Uma figura magra e mirrada, que nunca perdeu o sotaque do estado de origem. De confiança, só carecia de pressa com seu andar claudicante. Levava horas para percorrer poucas quadras.

A Mesa 1 do Bar e Rotisserie Pelotense, na rua Riachuelo, usava muito os serviços profissionais do Baiano. Como pagamento, recebia gorjetas, cujo valor variava de acordo com a importância da tarefa. Ligar para a esposa informando que o maridão chegaria mais tarde era a tarifa máxima, porque as patroas descontavam nele a raiva pelas desculpas esfarrapadas.

Certo dia, a Mesa resolveu beber vinho alemão, moda na época. Com os cotovelos grudados no balcão de mármore, Baiano ouviu o papo e se prontificou a ir a um navio que atracara no Cais do Porto, cujos marinheiros vendiam de tudo inclusive bebidas de boa cepa, eles o conheciam de outros carnavais.

Deram dinheiro a ele e esperaram, e esperaram, o vinho alemão, que segundo o buscador etílico era absurdamente caro. Nesse ínterim, alguém levantou para comprar  algo na rede Comes & Bebes, precursora das lojas de conveniência, que vendia até bebidas importadas.

Ao adentrar o espaço, quem viu escolhendo vinhos? Pois é, o Baiano. Fizeram as contas e viram que os tais marinheiros cobravam o dobro do preço da Comes & Bebes.

Ao voltar para a Mesa 1, disse aos confrades que, pela primeira vez na história, um navio deitou âncora na rua Riachuelo. Perdoaram-no, claro.

Dias depois, ele deitou os cotovelos cansados no balcão de mármore e ouviu a má notícia, o doutor Zeca havia falecido. O baiano ergueu os olhos tristes à procura de luz e falou mais arrastado que nunca.

– Lá se foi minha aposentadoria…

Fernando Albrecht

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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