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A noite das almas geladas

O Baiano entrou devagar no Bar Pelotense, como se o corpo relutasse em mover os poucos quilos e baixa estatura de uma infância carente de proteínas, com pele crestada pelo sol. Dirigju-se para a mesa 1.

– Cadê o doutor Zeca?

O nordestino leve, tão leve que poderia ter sido trazido da Bahia pelo vento, prestava serviços para a turma, como pagar contas e tirar dinheiro do banco em troca de uma gorjeta que ele chamava de INPS, hoje INSS.

– O doutor Zeca morreu. Atropelado.

O Baiano baqueou. Para não cair apoiou o magro braço no alto balcão de mármore do bar.

– Lá se foi meu ienepeesse – gemeu.

Soube depois que o Zeca ainda tentou um habeas corpus. Mas o automóvel assassino o negou como todos os que abusaram da vida que agora dava o troco. O Baiano foi um dos tantos perdedores que tentavam fugir dessa condição.

Então, os baianos da vida sempre tiveram a minha simpatia. Gente cujo maior desejo era ter um dinheirinho para comer um PF na época chamado de “completo”.

Não só os subnutridos da sorte. Mas também pessoas bem postas na vida que perderam o chão abaixo dos seus pés por um motivo ou outro, que lhes deixou amargurados e com cicatrizes na alma.

Um deles foi um advogado de cidade da Fronteira Oeste, um senhor bem vestido com bengala trabalhada com castão de prata que, de vez em quando, mostrava a cara sofrida no Stylo Bar na avenida Independência. Certa madrugada, ele recitou um soneto pungente sobre os cabarés da cidade, chamada de Vila Alegre.

Para ele, ela se transformou em Vila Triste. O de sempre, um amor que se perdeu, mas nunca foi olvidado.

Pessoas simplórias eram menos perseguidas pela mala suerte. Era gente que acreditava que a Lua era um pandeiro de prata. Então, não ligava para preconceito, tinham a Lua na alma e estrelas no seu peito, como na música do compositor porto-alegrense Túlio Piva.

As mulheres do  mundo da noite nunca tiveram nem estrelas na alma, troca de sexo por dinheiro era a saída derradeira. Estas, sim, chacoalharam os guizos falsos da alegria.

Certa noite alta, com frio danado, chuva de revesgueia e zero clientes na boate Ma Griffe, na rua Bento Gonçalves, um grupo delas murmuravam seus dramas. Amores perdidos e sonhos nunca alcançados, um cliente rico que as tirasse dessa vida vida casando com uma sortuda.

Não precisavam falar alto, a história de uma era a história de todas. Confidências regadas a rum com Coca-Cola ou cerveja.

O lamento transbordava, e como alguém já disse, existe um certo consolo nele. Antes da casa fechar, lembrei da música “A Mão do Tempo”, de Tião Carreiro & Pardinho.

Que bom se a gente pudesse
        Arrancar do pensamento
        E sepultar a saudade
        Na noite do esquecimento.

O álcool pode esquentar o corpo, meu doutor. Mas nunca conseguiu aquecer a alma. No entanto, era o que a casa oferecia.

Fernando Albrecht

Fernando Albrecht é jornalista e atua como editor da página 3 do Jornal do Comércio. Foi comentarista do Jornal Gente, da Rádio Band, editor da página 3 da Zero Hora, repórter policial, editor de economia, editor de Nacional, pauteiro, produtor do primeiro programa de agropecuária da televisão brasileira, o Campo e Lavoura, e do pioneiro no Sul de programa sobre o mercado acionário, o Pregão, na TV Gaúcha, além de incursões na área executiva e publicitário.

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