Coloque-se no cenário que eu vivo hoje. Mesmo morando na parte mais alta de Porto Alegre, fiquei oito dias sem água.
Quando chegou o limite do insuportável, fui de mala e cuia para a cidade litorânea de Tramandaí, na qual permaneci uma semana. Pelo menos tinha água e energia.
Entretanto, por uma série de circunstâncias, não tenho mais carro. Como é longe do centro, Uber pra lá e pra cá. Sem chuva, a pé. Restaurantes abertos em boa parte.
Voltei ao trabalho presencial no Jornal do Comércio. Aí começou a parte 2 do sofrimento. Embora nada comparável aos que perderam tudo.
Acertei em baixar a página 3 do JC mais cedo, sabendo que, a partir de determinada hora, tudo entupia. Batata, como se dizia antigamente.
Na terça-feira, uma soma de circunstâncias causou engarrafamento em boa parte da cidade. E, na área do JC, foi pior. Resumo: não consegui Uber, táxi nem ônibus. Remédio foi caminhar para casa, coisa de 50 minutos. Ufa, eu pensei, pelo menos estou no lar doce lar.
Ontem veio aquele aguaceiro todo e o repique da enchente. Já não é mais castigo para o Rio Grande , é maldição. O remédio foi trabalhar de casa, que não é a mesma coisa que o presencial.
Na administração do dia a dia, mais problemas. A roupa não seca, o supermercado está carente justamente com que eu preciso. A farmácia da esquina fechou.
Durmo mal, bateu a neura. E, então, acordo sobressaltado. Comparando com mais de 500 mil gaúchos sem nada – sem dinheiro, sem emprego, sem casa, sem roupas e sem futuro – eu posso me considerar um felizardo.
No Hino Rio-Grandense, há uma parte que diz “sirvam nossas façanhas de modelo”. Eu não queria essa façanha para sobreviver ao meu pior inimigo.
Sob chuva forte, caminho até o Shopping Total. Não é longe. No entanto, o percurso dobra para evitar poças de água. Mesmo na descida, a água vem dos quintais e das calhas.
Chego no shopping, e minha filha manda SMS informando que ruas do Centro voltaram a alagar, e que as ruas próximas ao jornal também. Então me resigno a trabalhar com o celular.
Antes de chegar, ouço alguém tocando saxofone em uma das residências da rua André Puente. São 11h51min. Passo por um morador de rua dormindo abrigado sob uma estreita marquise. Pobre não dorme, desmaia.
Chego numa cafeteria e peço café e um pão de queijo. Devo me considerar um homem feliz. Tenho teto, família, cama, água potável e comida.
Tragédia
A reprodução do jornal do município de Alegrete, na Fronteira Oeste, não necessita palavras ou considerações ao pé de uma tragédia completa: https://online.fliphtml5.com/ynbjx/osjv/#p=1