O plantonista do necrotério preenchia o formulário de entradas e saídas do dia. Era de noite, tudo quieto no prédio e muito mais quieto no necrotério, iluminado por luz fosforescente.
Outra fonte desta luz estava em cima da mesa. De repente, aparece um sujeito à sua frente. A luz forte não deixava ver bem o rosto do visitante.
– O senhor é visitante, como entrou?
– Sou novo aqui, desculpe tê-lo assustado. Eu queria um favor, se não for pedir muito, doutor.
O legista botou a tampa na caneta.
– Diga.
Ele tossiu.
– O ar aqui é gelado pra caramba, mas bem, eu sempre tive curiosidade em saber como vocês identificam os cadáveres. Sabe, de repente, pode haver um engano terrível, e a família enterrar o cara errado.
O doutor ia responder, mas o novato se antecipou.
-…então lembrei dos filmes em que aparecem necrotérios e cadáveres, e aí vi que vocês colocam um cartão de identificação e o penduram no dedão dos mortos.
Fez-se um breve silêncio. O plantonista teve um lampejo.
– Peraí, acho que já nos conhecemos! De onde?
– Daqui mesmo, presumo. O senhor é um péssimo fisionomista. Mas voltando ao assunto do dedão. O favor que eu queria é simples: o senhor poderia substituir o cordão com o cartão por outro sistema?
Então ele levantou o camisolão e mostrou o pé.
– É que me dá muita coceira, meu caro. Sou alérgico a barbantes e assemelhados. Estou aqui há uma semana e, além do frio polar que faz na minha gaveta, meu dedão coça sem parar. É muita coisa.
Pasmo, o médico viu o sujeito arrancar a identificação, jogá-la na mesa, caminhar em direção à gaveta refrigerada, abri-la e nela se deitar.